Arquivo da Categoria ‘O Olhar de….’

O Olhar de … Hugo Lança

22 de Fevereiro de 2008

da-memoria-beja-2007.jpg
foto: joão espinho

    A fotografia é absolutamente soberba. Com a mesma honestidade intelectual que afirmei não apreciar a primeira foto que comentei, cometo a audácia de a considerar das melhores fotos do João Espinho!

    Perco-me na película e deixo-me penetrar pelo passado, a nostalgia toldar-me a mente, infiltrando-se em mim. Esboço um sorriso triste de patética inveja, num suspiro de ansiedade, rogando que tudo na vida devia ser assim, que as lembranças fossem apenas patéticas e consumidas cinzas de um passado perdido no tempo, imagens desalinhadas que os anos fizeram perder o norte e o sentido, despojos do que se deixou esquecido na memória para jamais regressar.

    Detenho-me nas paredes semi-desnudas, no chão coberto de entulho esparso, objectos deslocados, sem nexo, sem conteúdo ou contexto: como todo o passado devia ser! Apenas ténues lembranças, de vivências que já não são nossas!
    Hugo Lança

Share

O Olhar de … Jorge Castro

15 de Fevereiro de 2008

bancos-de-espera_shapes_joao-espinho.jpg
foto: joão espinho

    moldo em quadrados o quadro
    enquadro a quadra moldada
    sobram-me espaços no adro
    dessa igreja esvaziada

    corro e percorro o espaço
    buscando o tempo que tarda
    que de espesso me deslaço
    sem tempo que no chão arda

    Jorge Castro

Share

O Olhar de … Paulo Arsénio

8 de Fevereiro de 2008

the-assassination-of-benazir-bhutto-the-new-york-times.jpg
foto: John Moore/Getty Images

    Explodir, Destruir, Ferir…INTIMIDAR;
    Rebentar, Mutilar, Matar…INTIMIDAR;
    Condicionar, Assustar, Amordaçar…INTIMIDAR;
    Sujeitar, Chocar, Violentar…INTIMIDAR!

    Paulo Arsénio

Share

O Olhar de … Manuel Vilhena

1 de Fevereiro de 2008

953128quintos_fotojoaoespinho.jpg
foto: joão espinho (publicada aqui)

    Começo com uma lapalissada, não, com duas – só desaparecem fotografias a quem as tira e o facto de se saber onde está tal coisa não impede que se dê a mesma como desaparecida.

    Vi esta foto aqui por duas vezes. Na primeira, mal a contemplei, vi-me transportado para os campos para lá de Ourique, para os primeiros colos da serra que se espalha por toda a largura do reino, a separá-lo naturalmente do Algarve. Para aquela imensidão quase despovoada que se perde de vista. Para o meu deserto.

    Ali, num certo dia do ano 2000, andando em busca de memórias perdidas e de horizontes largos, tropecei num portal de um cemitério que ostentava a data do próprio ano jubilar de 2000 e cuja singela cruz me fez logo cativo. Como se uma entre as vulgares cruzes de pedra fosse coisa muito para além do já visto.

    A verdade é que aquela imagem, que era magnífica, dadas as condições de luz e de ermamento e por ser a primeira vez que via em letra de pedra o mágico número dos três zeros, causou ainda assim uma certa decepção porque eu procurava ali outra coisa que não aquela – um cemitério antigo, não um acabado de renovar.

    Enquanto ali me detive, já perto do sol-posto, as cores perdiam calor e eu substituía, consciente, uma memória por outra.

    As fotos desses dias sei onde estão. É pouco provável que apareçam. Sei que há lá uma que é a que motivou estas linhas. Mesmo que não exista a não ser na minha memória.

    Memória substituída esta. Mais uma vez. Por esta foto do João.

    É que também lá está um rosto feminino. Um só? Divisam-no(s)?

    Manuel Vilhena

Share

O Olhar de … Gisela Cañamero

25 de Janeiro de 2008

beja-seculo-21.jpg
foto: joão espinho

    eu vejo-os:
    desvendo os olhos cegos de quem
    ao olhar
    nada vê.

    eu vejo-os:
    intrusos. tão só
    intrusos.

    há no meu jardim um canto denso
    em manso
    assobio.

    nem rancor
    nem sorriso
    nem rasto de fulgor.

    eu vejo-os:
    tão prisioneiros de certezas vãs.

    que nunca o canto feito vento
    lhes revele o meu pensamento.

    Gisela Cañamero

Share

O Olhar de … Nuno Júdice

18 de Janeiro de 2008

504245anne_vitale.jpg
foto: Anne Vitale

    DEMOCRACIA

    Fui dar com a democracia embalsamada, como
    o cadáver do Lenine, a cheirar a formol e aguarrás,
    numa cave da Europa. Despejavam-lhe por cima
    unguentos e colónias, queimavam-lhe incenso
    e haxixe, rezavam-lhe as obras completas do
    Rousseau, do saint-just, do Vítor Hugo, e
    o corpo não se mexia. Gritavam-lhe a liberdade,
    a igualdade, a fraternidade, e a pobre morta
    cheirava a cemitério, como se esperasse
    autópsias que não vinham, relatórios, adêenes
    que lhe dessem família e descendência. Esperei
    que todos saíssem de ao pé dela, espreitei-lhe
    o fundo de um olho, e vi que mexia. Peguei-lhe
    na mão, pedi-lhe que acordasse, e vi-a mexer
    os lábios, dizendo qualquer coisa. Um testamento?
    a última verdade do mundo? «Que queres?»,
    perguntei-lhe. E ela, quase viva: «Um cigarro!»
    Nuno Júdice

Share

O Olhar de …. Horácio Flores

11 de Janeiro de 2008

vendedor-de-castanhas-em-beja.jpg
foto: joão espinho

castanhas-assadas.jpg
foto: joão espinho

    Tal como acontece com certas peças de música, designadamente erudita, que ensinam a gostar de música a quem as ouve pela primeira vez, enquanto outras exigem alguma cultura musical para uma nem sempre fácil e imediata adesão, estas duas fotografias, que se completam e por isso não as dissocio, para além da excelência estética, têm uma potencial função didáctica, pois ensinam qualquer não iniciado a gostar de fotografia de autor.
    Até o Nunes da ASAE, o da cigarrilha no casino, gostaria: é que o João Espinho, à cautela, teve o cuidado de substituir a castiça folha de lista telefónica velha por um asséptico papelinho branco

    Horácio Flores

Share

O Olhar de… Rui Sousa Santos

21 de Dezembro de 2007

541033-m-igor.jpg
foto: m. igor

A nitidez do copo ou a granularidade do segundo plano.
O êxtase ou o desespero da fuga.
O desprendimento total de quem esteve nas bordas do paraíso ou o erotismo frio da morte.
Mamilos (ainda) erectos ou mero fenómeno post-mortem.
A chegada ou o fim.
Quero-te ou não quero ninguém.
(que se lixe o copo, afinal não partiu, ainda aguentas outra vez?)

Rui Sousa Santos

Share

O Olhar de … Carlos Almeida

14 de Dezembro de 2007

chamine-em-serpa.jpg
foto: joão espinho

    Não digas que o céu te pertence
    Tu que a alma lhe enches de brancuras
    É no escuro que o calor te aquece
    Onde das tuas vaidades esqueces
    e das ruas as verdades apuras.

Carlos Almeida

Share

O Olhar de… Jorge Barnabé

7 de Dezembro de 2007

casa-de-albernoa_2007.jpg
foto: joão espinho

    Fugimos com o olhar ao tempo parado que nos rodeia. Fingimos a ignorância de quem não tem de se preocupar. Contornamos as paredes que se arruínam gastas pela ausência de um abraço. Bastaria um abraço. Bastaria uma conversa demorada, sentados nos bancos improvisados. Seriam suficientes uns olhares mais atentos. Uma porta escancarada convida-nos a entrar no escuro de uma casa abandonada. O vermelho sangue das barras que repelem os animais de sangue frio desfaz-se na putrefacção dos dias que demoram. As manhãs são iguais às tardes e as noites são diferentes apenas porque as paredes morrem no silêncio dos camponeses. Dia após dia, noite após noite a casa aguarda um olhar diferente. Alguém que nela repare. Alguém que se detenha na amargura do tempo parado que a condenou à resignação. Um novo olhar pode dar-lhe vida. Realçar-lhe as cores.

    Mantém a fronte varrida à espera que algo aconteça. Distribui os bancos improvisados estrategicamente. Mesmo que neles ninguém se queira sentar. Aguarda de porta aberta uma visita. Alguém que queira partilhar o cheiro embriagante das pipas de vinho, ou quem ouse partilhar uma taça de branco enquanto as vozes ecoam na casa vazia. Aguarda. Resiste na fragilidade do tempo parado. Agarra-se à luz do dia que ilumina a sua face rugosa e envelhecida. Bastaria um abraço, ou uma conversa demorada. Um novo olhar chega e fixa-se nas suas cores. Prende-se demorado na verticalidade da sua fachada. Regista para a eternidade um rosto que se definha. Sabe agora que não a esquecerão. Pelo menos alguém não a esquecerá. Há quem tenha reparado em si. No exacto momento em que se despede do passado.

    Jorge Barnabé

Share

O Olhar de … António Revez

30 de Novembro de 2007

stalker
foto: stalker

    Eras o meu mundo tamanho de todo o mundo. Um mundo maior que os mundos. Dentro das minhas mãos. Apertadas. Como as prisões do mundo. Às vezes escapavas para molhares o corpo nos mares que te assobiavam. Vinhas suja de tantas correrias sem sentido. Vinhas tarde. Vinhas com as cores pálidas do cansaço. Vestida com o silêncio da noite. Mas vinhas. E acordavas nas minhas mãos. Apertadas como as mães órfãs.
    Eras o meu mundo tamanho das asas dos condores em cada beijo. Um mundo maior que todas as montanhas do mundo em cada abraço. Apertado como os irmãos suicidas.
    Agora partiste na direcção do céu, e levaste todos os mundos contigo. O meu mundo desapareceu também. Mas encontrei um caminho, vindo de ti certamente. Largo como todo o teu tamanho, como o mundo. Já podes vir. Eu espero-te. Perdoa-me. Se não couberes nas minhas mãos desta vez, eu não me importo que o meu mundo viaje contigo para qualquer lugar. Desde que acorde com o teu sorriso. Ou consiga fingir que ainda estás aqui.

António Revez

Share

O Olhar de…Hugo Lança

23 de Novembro de 2007

reloj_solar_ziza-1.jpg
foto: ziza

    Ela viveu cada dia da sua adolescência como se fosse o ultimo! Aproveitou cada minuto, cada segundo, entregando-se sofregamente a prazeres efémeros, tendo o bom senso de praticar todos os desvarios. Teve todos os homens que desejou e uma ou outra mulher.

    Correu todos os riscos, fez tudo o que a paixão lhe pediu, insanidades várias que guarda na caixinha das recordações inesquecíveis. Aquela tímida caixa que apenas nos permitimos abrir no silêncio da noite, nos momentos que partilhamos connosco, os únicos instantes que nos permitidos despir todas as máscaras, assumir as nossas falhas, defeitos e sonhos…

    Mas um dia, porque há sempre um dia, uma meretriz de uma lágrima desfilou no seu rosto, abrupta, inesperada, cruel, quando sentada na verde esplanada, lia um romance que falava de amor, enquanto coleccionava cigarros no cinzeiro. Em redor, crianças tontas guinchavam, pulavam como cabras doidas, matando a pacatez daquela esplanada. Mas ela, naquela tarde, não protestou com o ruído, mas admirou de forma cândida as crianças que brincavam no jardim, perante o olhar meloso de suas mães.

    Sentiu que a hora mudou: o seu relógio biológico berrou pela maternidade….

Share