Fev 01 2017

A Língua pode ser um orgasmo da alma

Publicado por as 18:41 em Crónicas

Crónica publicada na Rádio Ourique (leia aqui)

Estamos a começar o segundo mês do ano e temos a sensação de que 2017 já vai longo.

Começámos com o falecimento de Mário Soares, figura ímpar na luta pela Democracia e na defesa da Liberdade. Podíamos não gostar do seu estilo, das suas opções políticas ou mesmo da sua maneira de estar na vida, mas temos, e devemos, reconhecer-lhe o indiscutível valor na fundação de um Portugal sem mordaças, livre e democrático.

No campo oposto tivemos a entrada em funções do Presidente dos Estados Unidos da América que, queira-se ou não, é (será?) o líder da nação mais poderosa do mundo. Todos os dias somos bombardeados com os seus despachos, decisões e decretos, cada um pior que o antecedente. O populismo tem em Trump o seu maior e mais perigoso exemplar. Os EUA são muito maiores que o seu presidente e não mereciam ter uma figura destas à frente dos seus destinos.

Por cá, assistimos ao primeiro abanão no governo da geringonça, quando o PSD decidiu juntar-se ao PCP e ao Bloco de Esquerda para “chumbar” o decreto governamental da TSU. Com visíveis ganhos imediatos, resta saber se este tipo de oposição adoptado por Passos Coelho dará frutos no futuro do PSD. E do país.

Nos nossos concelhos vamos assistindo aos preparativos para as eleições autárquicas que terão lugar no Outono deste ano. Quem está no poder vai usando as ferramentas municipais para se vangloriar, ora por obras feitas, ora por obras que promete vir a concluir. Todos os meios servem para fazer propaganda, assistindo-se a uma clara ausência de pudor na utilização de meios públicos para ir fazendo propaganda eleitoral. Na minha cidade (Beja) é assim que tem acontecido. Calculo que o mesmo se passe nos outros concelhos. Basta dar uma espreitadela aos diversos boletins municipais – esses jornais camarários suportados por todos nós – para verificarmos até onde pode ir o descaramento.

Também em Portugal, o país bafiento e cheio de mofo decidiu sair do armário para falar sobre literatura, livros e sobre um tal Plano Nacional de Leitura. Obviamente que não se podia esperar boa coisa, quando alguns pais/encarregados de educação decidem manifestar-se contra duas – sim duas – páginas de um livro que, dizem, incluem conteúdo sexual que consideram “violento” e “inapropriado” para alunos do 3º ciclo.

Subitamente, transformaram-se adolescentes em crianças, em meninos de coro, em “imberbes” que nunca ouviram falar em alhos, confundindo bugalhos com rabos, glúteos com seios sem mamilos, etc… Adolescentes que, não tenho dúvidas, nunca espreitaram na internet aquilo que os seus educadores (alguns) pagam para ver nos canais de tv por cabo. Obviamente que os filhos destas famílias protectoras saberão, na devida altura, agradecer aos seus pais que lhes ocultem Gil Vicente, Saramago, Sophia ou mesmo Eugénio de Andrade.

E porque falamos da nossa Língua, foi notícia que o Acordo Ortográfico vai ser sujeito a uma “revisão ligeira”, pondo fim a algumas situações absurdas que levaram ao “abrasileiramento” do português escrito.

Aqui, como por exemplo com o “assunto eutanásia”, serão os legisladores burocratas a tomar as decisões. Muitas vezes apetece-me dizer que o 25 de Abril não chegou às nossas casas, às nossas cabeças. Enquanto as mentalidades continuarem fechadas em gavetões escuros, a modernidade, o desenvolvimento cultural e o progresso serão expressões inconsequentes no nosso viver.

Termino esta crónica com palavras de Vítor Encarnação, que tão bem tem tratado o escrever português, porque a poesia pode iluminar-nos os dias e trazer-nos um novo olhar sobre as coisas do mundo. E porque a escrita pode ser um orgasmo da alma.

    “dou-te palavras ao ouvido
    como se te desse mel.
    Espessas e vagarosas
    escorrem para o teu pescoço
    e para os ombros
    e depois para todo o lado,
    e as minhas mãos,
    felizes e açucaradas,
    enfeitam o teu corpo
    com as inquietações
    formidáveis do desejo.”

João Espinho – 31 de Janeiro de 2017

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