Mar 05 2007

A desgraça é fotogénica

Publicado por as 8:30 em Crónicas

(crónica publicada no Notícias Alentejo – Março/2007)

Anualmente, mais ou menos por esta altura, são divulgadas as fotografias premiadas pela World Press Photo , organização independente sedeada em Amesterdão, vocacionada para promover o fotojornalismo e responsável pelo maior e talvez mais prestigiado concurso de fotografia do mundo. Com mais de 50 anos de existência, a WPP tem tido um trabalho digno de destaque na descoberta de novos valores no fotojornalismo, ao mesmo tempo que confirma a Fotografia como Arte. Refira-se que a exposição itinerante da WPP é vista anualmente por mais de 2 milhões de visitantes em 45 países. Portimão recebe a exposição de 21 de Julho a 12 de Agosto e na cidade da Maia estará patente ao público durante o mês de Novembro.

Quem já teve o privilégio de observar as obras patentes nas exposições da WPP, sabe que ali se fala, essencialmente, de jornalismo, da forma como é dada uma notícia, como se transmite determinado acontecimento, não através de textos, mas de fotografias.
Invariavelmente, são as imagens captadas em teatros de guerra, ou de desgraça, as mais premiadas. Serão também, não duvido, as mais apreciadas. Corpos mutilados, exércitos lado a lado com esqueletos, cidades destruídas e crianças famintas, são ingredientes que o leitor das imagens da exposição da WPP tem ao seu dispor para construir a notícia.
Construir a notícia?
Deveria ser assim.
Mas o fotojornalismo dos dias de hoje não deixa margem para interpretações. O leitor pode, quanto muito, avançar emotivamente com algumas questões, interrogar-se sobre a crueldade das imagens. A fotografia é, assim, uma antecâmara da exclamação de horror, da manifestação de repúdio. O espectador, magicamente, afasta o fotógrafo – o que pôs em evidência a notícia – esquece os timbres, as escalas, os contrastes – a técnica – e transforma-se em juiz do escândalo, em advogado de acusação dos senhores da guerra, em causídico que denuncia a calamidade.
Por momentos – o momento da visita – a notícia é-nos servida de uma forma diferente.
Não vamos ver imagens de uma guerra. Não vamos visitar registos de um território dizimado. A exposição WPP serve-nos a guerra, a desgraça, o horror, como se de um revista de culinária se tratasse (e onde sabemos que vamos encontrar as iguarias muito bem compostas e ornamentadas).
A fotografia vencedora do Concurso WPP 2007 é disso um bom exemplo. Um grupo de jovens libaneses, de aspecto cosmopolita, fazendo-se transportar num descapotável vermelho metalizado, passeia-se perante um cenário de destruição num bairro de Beirute. A imagem é servida a frio, retrata uma contradição, e ao espectador não restará mais do que lamentar o facto de a desgraça ser tão fotogénica.

João Espinho

worldpress2007001.jpg

foto: Spencer Platt

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2 Resposta a “A desgraça é fotogénica”

  1. Yardbird diz:

    Há muito que é assim. Ao que parece, a miséria e o horror parecem muito mais sugestivas que a outra face da vida. Talvez vingue a ideia de que todos devemos tomar consciência do verdadeiro peso da vida. Nunca mais me esqueci daquela foto da rapariguinha fugindo das bombas, nua por uma qualquer estrada do Vietnam. Os anos que já lá vão, e a lembrança perdura…

  2. nikonman diz:

    @yardbird – este é um tema que correntemente volta á baila. Sem tirar a dignidade de muitos dos trabalhos que são apresentados na WPP, parece-me, no entanto, que o fotojornalismo pode ir muito mais além do que apresentar registos da desgraça. Mas é a “escola” Sebastião Salgado que está na mó de cima e contra essa corrente pouco há a fazer.
    Um abraço.

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