Mai 10 2005
CONTO DA MADRUGADA -7-
foto: pitt blind
Pediu-lhe que se vestisse, dizendo-lhe que não a poderia fotografar. Não naquele dia.
Ela percebeu-lhe os argumentos. E percebeu também que, a partir daquele momento, ele seria mais uma peça no seu jogo de ligações. Sentia-se compensada, depois do fracasso com o homem que ela tanto desejava e que a havia humilhado com a ausência, um ramo de flores e um simples cartão.
Vestiu-se, deu um pequeno retoque no batôn dos lábios e espalhou os dedos pelos cabelos, deixando-os soltos, da forma como ela mais gostava de se ver.
Despediu-se com um até breve, ficando com a súbita sensação de que ele não a ouvira, pois já estava atarefado com os iluminadores e todas aquelas máquinas apontadas para o cenário, que há pouco a tinha como principal objecto.
Cruzou-se nas escadas com várias pessoas, que lhe pareceram todas deselegantes, mas reparou nos sapatos de uma mulher, de gabardine preta e que, apesar da chuva que lá fora caía, trazia óculos escuros.
Seguiu em direcção ao café mais próximo, olhou para o céu, havia deixado de chover, mas pareceu-lhe que uma tempestade se aproximava.
Voltou para trás, pensando que se havia esquecido da sombrinha no estúdio e reparou que as caras com que se cruzava continuavam a ser feias e de gente muito vulgar.
Abriu a porta que se encontrava encostada e mesmo ali no vestíbulo vê a mulher que lhe chamara à atenção ainda há pouco. Os sapatos eram os que tinha visto. Os óculos estavam em cima de uma mesa e no bengaleiro a gabardine. Não havia vestígios de qualquer outra roupa.
Na sua frente estava aquela mulher, esbelta, aprumada, com um corpo a transpirar sensualidade, a desembaraçar-se dos sapatos e a quem ele agora chamava lá de dentro, dizendo-se preparado para ela e para todo o resto do dia. Só para ela.
Hesitou, mas saiu sem fechar a porta.
Lá fora chovia torrencialmente.
10 de Maio de 2005 às 11:45
Deveria ter voltado, ou terem se encontrado na chuva…Os dois e amarem-se assim..sem pressa…
BEIJOS
10 de Maio de 2005 às 13:38
Está cada vez mais misterioso este conto. Estou a gostar:) beijos
10 de Maio de 2005 às 15:52
Está magnifico. Só não invento uma sequencia porque estou cheio de curiosidade de ver como é que isto se desenvolve…..
11 de Maio de 2005 às 0:45
Encostou-se um pouco à porta como se fosse a colocar a chave na fechadura. Já há muito que tinham passado os anos em que o seu corpo servira de modelo a pintores e escultores. Agora, elas, as que lhe haviam a pouco pouco tomado do seu lugar, nascidas do nada, miravam-na com o mais absoluto desprezo.
-A beleza só pode ser imortalizada- pensou ela. Ninguém a detém. Na breve ilusão de meia dúzia de anos em a julgamos nossa, descobrimos que os Deuses usaram o nosso corpo como expositor dos seus domínios, para logo nos retirar o que parecia nosso eternamente…
Olhou para ela que descia os degraus. A chave mexia na fechadura sem entrar, dando-lhe o tempo certo para poder apreciar. Leu nos olhos dela como desprezava a vulgaridade e a decrepitude. Era realmente muito bela. Quase Balzaquiana, tinha ainda toda a elegância e porte de quem tem no corpo o altar supremo da beleza. Mirou-a bem. Já longe ia o tempo em olhava para elas com amargura e nostalgia, levada pela inveja mal reprimida.
O que mais custa na vida é a descida aos infernos. No fim da viagem, a permanencia torna-se uma rotina. Perdida toda a ilusão, resta no saber da experiencia feita, de que ela, agora Musa, também irá descer, um dia, de pedra em pedra, de encontrão em encontrão, de desilusão em desilusão no vale de lágrimas, escorrendo, até chegar onde estava agora.
Viu como ela desceu e saiu. Entretanto reparou como no andar de cima outra tinha entrado.
De óculos escuros num dia de chuva? Curiosa, ficou a espreitar atrás da porta. O seu instinto dizia-lhe que algo poderia acontecer. Ela já tinha visto tanto na vida…
Não foi preciso esperar muito. Sentiu alguém subir as escadas. Rapidamente abriu a porta enquanto se pôs a ajeitar o tapete da entrada. Reparou como ela subia novamente até ao andar de cima e como lhe tinha lançado mais uma vez o olhar de deprezo. Os passos pararam. A porta rangeu um pouco e adivinhou uma pausa. Os passos ficaram suspensos à entrada da porta e o ar frio da escada misturou-se com calor do Estúdio. Depois, sem um única palavra ouvia-a descer lentamente. A porta do estúdio ficara aberta o que facilmente se deduzia pela acústica alterada dos sons dos passos. Agora era a vez da velha olhar para ela. Um esboço mal disfarçado dum sorriso compreensivo misturado com um regozijo interior pelo que estava presenciando. Olhou para ela que já descia de costas no último lance rumo ao exterior. Toda a soberba e sobranceira desaparecera. Evitara cruzar o olhar quando os corpos se cruzaram. No rosto belo acabara de ver as lágrimas misturarem-se com as gotas da tempestade que variam a sua alma.
– Estes degraus não são nada minha linda,- pensou.
– Isto é só o principio da descida que vais ter de fazer até onde eu estou, nem um degrau ainda desceste…-
E fechou a porta sorrindo. Os Deuses não se haviam esquecido dela de todo. De vez em quando serviam-lhe vinganças frias. Rodou a chave e espreitou à janela.
Lá fora começara a chover torrencialmente….