Fev 01 2005
Célia -46-
“Cancelei o meu voo. E pouco me interessa o que ele vai fazer”.
Assim, a frio, muito mais cedo do que esperava, Célia começa a desmanchar uma relação que parecia, aos olhos de todos, sólida e duradoira.
Sem saber o que lhe dizer, pois tantas já haviam sido as palavras de esperança, equacionei o que poderia vir a seguir. Este rompimento não se tornaria fácil. Os vértices das relações dificilmente seriam demolidos. A permanente presença, quase asfixiante, do seu companheiro diplomata, a sua relação com Mariana e desta com aquele, a visibilidade que adoptara no meio e a súbita forma como se aproximara de mim, tudo isto se iria tornar num sombrio pesadelo para Célia.
Imaginei que as forças lhe voltassem a faltar, que mais uma vez iria tentar uma fuga para o abismo. Tinha a certeza que esta seria a última oportunidade que se estava a oferecer. Um fracasso poderia ser fatal.
“Se quiseres saio da tua vida para poderes respirar sem a minha presença”, mandei-lhe a mensagem, numa tentativa de lhe dar espaço para avaliar os caminhos que escolhera. Hesitei em ligar a Mariana que, mais perto, poderia saber melhor o estado de Célia. Eu temia o pior e naquele momento não sabia se o pior era mesmo o seu abandono, aceitar esquecer-me, o seu regresso ao companheiro ou se uma fraqueza demolidora a levaria a cometer a loucura.
Senti-me egoísta a pensar que Célia seria incapaz de tomar as decisões certas para ela.
Estava unicamente a pensar em mim e no que seria mais fácil para que, o que me viesse a surgir, não fosse surpresa. Pensei na minha felicidade e, talvez por isso, arrisquei em dizer-lhe por mensagem “espero o tempo que for preciso e como for preciso. Preciso de ti livre”.
Desconheço que razões me levaram a mandar uma mensagem a Mariana a convidá-la para um café. Tive uma súbita sensação de infidelidade, mas a verdade é que me apeteceu estar com Mariana. Ela aceitou, e pela rapidez da resposta, não duvidei das suas intenções.
2 de Fevereiro de 2005 às 18:30
O psiquiatra sentou-se e olhou fixamente para Célia.
– O que você me contou é sem dúvida uma revelação, Célia! Por mais que pudesse imaginar nem poderia supor de longe ou de perto que as coisas tivessem esse enquadramento.-
O psiquiatra era um profissional extremamente competente. Perante a tentativa de suicídio, as revelações dos seus pesadelos, e a certeza dum grave conflito de personalidade, resolveu modificar a sua estratégia. Agora, a tudo que Célia dizia, revelava-se propositadamente surpreso. Foi assim que obteve, como se tivesse dito a palavra mágica, a passagem para o cerne das contradições que compunham a sua vida. A cada vértice opõe-se um lado, pensava ele com ele próprio enquanto Célia abria a sua alma. Mas ao ângulo mais agudo opõe-se sempre o lado mais pequeno. Nem sempre as analogias trigonométricas funcionam, pensava ele, descorrendo sobre a infeliz comparação que acabara de fazer. Nas suas deambulações esquecera-se por um instante de seguir Célia.
Ela acabou por olhar para ele interrogativa. Havia descoberto de repente o alheamento do clínico, que fitava o vazio, totalmente distante das últimas frases de Célia.
– Doutor?- interrompeu ela elevando a voz.
Ele, sentindo-se por um instante apanhado, nem pestanejou. Lentamente, foi percorrendo com o olhar o breve espaço que mediava entre o infinito e os olhos ansiosos de Célia. Nesse intermináveis lapsos de segundo equacionou tudo o que ela lhe havia revelado. O diplomata, o fascínio inicial e a posterior descoberta da sua misteriosa vida dupla. O seu passado opaco, a ligação recente deste com Mariana, pesasse embora a sua pressão sobre a esposa.. Os seus pesadelos repetidos após a tentativa de suicídio. Pesou mentalmente algumas das notas que havia tomado após a primeira consulta. Pensou na desastrada segunda consulta que acabou por não ser.
Num relance recordou-a deitada na cama do Hospital, e as primeiras palavras…
Olhou para ela que correspondeu sorrindo levemente. Fitou-a bem nos olhos.
-Célia. Diga-me uma coisa….-
Fez uma pausa metódica, enquanto geria a expectativa da sua interlocutora
-Diga-me.- Seguiu.-
De que forma é que se sente atraída por Mariana?
Célia disse que era sua amiga, e….
-Não é isso que pergunto.- Interrompeu o médico.
– Você…. ama Mariana?