Nov 09 2004
CÉLIA -43-
A minha conversa com Mariana durou poucos minutos. A pergunta que fiz também não lhe deixou muito espaço para poder prolongar as palavras.
Ambos sabíamos o caminho que escolhêramos, por isso não havia que dar lugar a muitas dúvidas ou interrogações.
Sabia do seu envolvimento com Célia, mas tentava adivinhar até que ponto teria sido eu o provocador dessa atracção.
“Lembras-te da fotografia de Célia, com a maçã?” – como poderia eu esquecer aquele dia em que fizéramos amor na praia, em que ninguém existia para nós, e depois lhe pedi para posar, comendo uma maçã, que lhe escondia parcialmente a face, deixando perceber o brilho dos seus olhos que me declaravam paixão?
“Ela mostrou-me esse teu magnífico trabalho e…”, pedi-lhe para que não continuasse.
Hesitou e com um “agora deixas-me acabar” lançou-me “aquela maçã poderia ser eu, que não sou fruto proibido, nem Célia tão pouco é Eva, pois ama-te com uma dor de morte”.
Tentei ficar sereno.
E joguei-lhe a questão para a qual não conseguia encontrar resposta.
Quando se despediu, abraçou-me fortemente e fitando-me nos olhos, disse-me sem oscilar:
“Esqueceres o que te disse vai levar-te ao abismo. Acredita em mim”.
Não atendi o telemóvel que teimosamente tocava. Fui para a sala e li o poema que Célia me mandou.
Adão e Eva
Olhámo-nos um dia,
E cada um de nós sonhou que achara
O par que a alma e a cara lhe pedia.
– E cada um de nós sonhou que o achara…
E entre nós dois
Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente,
… Se deu, e se dará continuamente:
Na palma da tua mão,
Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.
– Meu nome é Adão…
E em que furor sagrado
Os nossos corpos nus e desejosos
Como serpentes brancas se enroscaram,
Tentando ser um só!
Ó beijos angustiados e raivosos
Que as nossas pobres bocas se atiraram
Sobre um leito de terra, cinza e pó!
Ó abraços que os braços apertaram,
Dedos que se misturaram!
Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri,
Sede que nada mata, ânsia sem fim!
– Tu de entrar em mim,
Eu de entrar em ti.
Assim toda te deste,
E assim todo me dei:
Sobre o teu longo corpo agonizante,
Meu inferno celeste,
Cem vezes morri, prostrado…
Cem vezes ressuscitei
Para uma dor mais vibrante
E um prazer mais torturado.
E enquanto as nossas bocas se esmagavam,
E as doces curvas do teu corpo se ajustavam
Às linhas fortes do meu,
Os nossos olhos muito perto, imensos,
No desespero desse abraço mudo,
Confessaram-se tudo!
… Enquanto nós pairávamos, suspensos
Entre a terra e o céu.
Assim as almas se entregaram,
Como os corpos se tinham entregado,
Assim duas metades se amoldaram
Ante as barbas, que tremeram,
Do velho Pai desprezado!
E assim Eva e Adão se conheceram:
Tu conheceste a força dos meus pulsos,
A miséria do meu ser,
Os recantos da minha humanidade,
A grandeza do meu amor cruel,
Os veios de oiro que o meu barro trouxe…
Eu, os teus nervos convulsos,
O teu poder,
A tua fragilidade
Os sinais da tua pele,
O gosto do teu sangue doce…
Depois…
Depois o quê, amor? Depois, mais nada,
– Que Jeová não sabe perdoar!
O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada…
Continuamos a ser dois,
E nunca nos pudemos penetrar!
José Régio
9 de Novembro de 2004 às 1:01
…..Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo….
José, o mesmo Régio
9 de Novembro de 2004 às 1:28
As luzes azuis relectiam-se nas paredes e um reboliço surdo sentia-se na rua. Os enfermeiros tratavam com a máxima cautela e descrição. O motor tinha ficado a funcionar, o que tinha feito surgir ás janelas os olhos cuscos do costume.
-Ah foi a vizinha! Aquela mocita magrinha. Como é que ela se chama…Ai agora não me lembro- …
As portas fecharam-se e o veiculo pôs-se em andamento
Dentro da ambulancia, ela vivia a calma dos Céus. Estava pálida como os anjos. O frasco do soro deixava passar pingos de vida para aquele corpo hesitante entre o agarrar-se ao presente e a viagem para a eternidade.
Ao lado dela tinha sido encontrado um bilhete, junto ao frasco de comprimidos.
…Tentei telefonar-te todo o dia- Começava a missiva.
Foi neste ponto que o colega interrompeu.
-Escuta, não devias estar a ler isso. Não te diz respeito. Fecha a carta. Ela tem familia, ou amigos. Alguém há-de aparecer a ve-la, e entregas isso.
O colega anuiu um pouco contrafeito. Dobrou em quatro e guardou-a no envelope. Depois olhou para ela e preguntou: -Achas que se safa?-
O seu interlocutor era mais velho e experiente, e respondeu com o toque da sabedoria:- Ela safa-se. Agora durante uns tempos vai andar bem, mas depois vai voltar ao mesmo. Já vi muitos casos destes e às vezes acabam mal. Enfim!- disse suspirando:- Uma moça tão bonita. Vá-la a gente entender estas coisas…-
9 de Novembro de 2004 às 9:39
Obrigado pelo com. no meu último artigo.
Compreendi e subscrevo.
Sem dúvida que a liberdade implica responsabilidade. Então, mais liberdade para que possa haver mais responsabilidade. E quando se começa a falar muito de liberdade é porque ela está em perigo. Não concorda?