Nov 03 2004
Célia -42-
Mariana entrou na sala, atirou a mala para cima do sofá, descalçou-se e pediu-me um cigarro.
Antes de lhe perguntar sobre o que me trazia atormentado deixei-a admirar-se nas fotografias da parede do fundo.
“Sempre gostei de me ver nestes teus trabalhos”.
Na verdade, aquelas fotografias faziam parte das melhores que havia registado numa experiência com iluminação fraca. Os traços da sua figura, as linhas acentuadas de um corpo bem definido, estavam bem realçados naqueles registos.
“Célia não se sentiu incomodada com estas fotografias?”
A expressão do meu rosto deve ter-lhe transmitido os sinais de que não pretendia responder àquela pergunta. Nem percebi porque estaria Mariana a fazer perguntas, quando era eu que estava a tentar compreender o que se estava a passar na minha vida. Era eu que tinha que lhe perguntar o porquê daquela súbita visita. Mariana havia passado fugazmente por mim e os momentos em que se deteve não foram suficientes nem intensos para que eu pudesse equacionar uma relação duradoira.
Queres tomar alguma coisa? E que música queres ouvir?
Só depois de fazer estas perguntas é que percebi que as respostas me poderiam trazer algum desconforto.
Estremeci quando a vi dirigir-se para o monte de cd’s e pesquisar as minhas mais recentes preferências.
“Ainda bem que tens cá este. O puto tem uma voz fabulosa. E Picture of my own é simplesmente maravilhoso. Vamos ouvir?”.
Não resisti em contar-lhe o que aquela música significava para mim e para Célia.
Num impulso, abraçou-me. Percebi-lhe as intenções.
Nessa noite fui fiel. A mim próprio.
5 de Novembro de 2004 às 9:00
– Então que tal vai isso hoje?- Disse o homem num tom profissional
Célia sentiu o sangue gelar. Olhou para o chão. Aquele homem tinha feito desabar numa frase toda uma esperança. Por que tinha ido ela ao psiquiatra? Nunca deveria ter dado ouvidos á sugestão.
A primeira consulta tinha corrida tão bem. Mas esta frase, esta entoação. Ele deveria dizer isto a todos os seus doentes. Um turbilhão de ideias controversas trespassou-lhe o espírito. Logo agora que precisava tanto de ajuda.
A primeira vez, tinha saído do consultório com uma sensação de alívio e esperança. Uns segundos antes de entrar pela segunda vez naquele gabinete vinha pensando em dizer tudo o que lhe atormentava a alma.
Os ciúmes da outra….
O manter das aparências…
A ideia de vingança.
As crises de choro
as insónias
A ideia de morte que a perseguia. Ela que tanto gostava da vida.
Não podia continuar a viver assim. Por isso ia dizer tudo. Logo à segunda…
– Então…- interrompeu o clínico. O tom de voz fez literalmente acordar nela uma a sensação horrível de Dejá Vue
Célia levantou os olhos húmidos e olhou para ele. E através dele.
Pensou que não era mais que uma hora no ganha pão dele. Mais um dossier, mais um caso para relatar com os colegas. Mais uma tragédia de vida feita em caso menor..
Levantou-se e correu escadas abaixo, deixando o médico a balbuciar não